sexta-feira, 14 de junho de 2013

For the Better / Slow



Ela sussurrava ao meu ouvido para abrandar. Os meus passos continuavam meio tempo mais rápidos do que a batida e, naturalmente, do que os seus. Sem surpresas, o número dos pedidos de desculpa que eu atirava na sua direcção tinham também uma maior cadência. E naquele período, onde o pânico se misturava com a vergonha e ambos toldavam a minha percepção dos contornos da sua face (a dúvida mantinha-se, será um sorriso de pena ou de diversão?), consegui um intervalo de uma fracção de segundo (se fosse pelas aparências teriam sido umas horas e ela seria loira) para pôr as ideias em dia:

"I've been doing this for a while..."

O namorado dela eventualmente apareceu. Se tivesse sido mais rápido...

(Nenhum par de sapatos foi ferido na escrita deste post)
o Homem do Meio.

quarta-feira, 6 de março de 2013

A Dúvida


Peço desculpa. Hoje não estou nos meus dias. Ontem sim, ou anteontem. Desculpem. Desculpem hoje não ser dos meus dias. Mas isto estava marcado para hoje, tem de ser hoje. Peço desculpa. Porém, tive uma ideia, que me parece que não é para desprezar. Não me lembro do que tinha de dizer. Quer dizer, não me esqueci do que ia dizer. Não me lembro é da ordem das palavras, mas sei exactamente – exactamente, pois – o que elas queriam dizer. Era… Era… uma coisa muito importante. (Pausa.) Só desejo que tenhais vindo também, como eu, por uma coisa muito importante. Nem doutro modo vos estimaria. (Pausa.) Para mim e para vocês, o mais importante é cada um de nós. Nem estamos aqui para outra coisa. É isto o que nos interessa – nós estarmos vivos. Vamos espreitar para tantos vivos que houve antes de nós e para tantos outros que há em volta de nós, para aprendermos a estar vivos. Antes de começar, pressinto que tudo vai acontecer bem. Temos aqui dentro desta sala tudo quanto nos é necessário – somos nós. Ainda que algum de vocês tenha vindo hoje aqui por acaso, não faz mal nenhum, é isto o que faz as pessoas – ter a certeza do acaso. Agora vou soltar palavras, pôr palavras à solta por cima das cabeças à espera de corações. (Pausa.) As pessoas estão sentadas à espera de ver se gostam. O verbo gostar. Hã. Ainda bem que nem eu nem vocês fazemos parte do público. Vai começar. (Pausa.) Não duvideis de mim, porque é a dúvida – ter a dúvida é saber exactamente o que estou a dizer. Vai começar. Vai começar. (Pausa.) Como vedes, começa pelo princípio. Quantos ramos de flores e quantas navalhas abertas trazem vocês aí nas mãos, atrás das costas? Não digam, não respondam. Acreditam que se pode esconder o que se pensa? Já repararam nos meus olhos? Reparem bem nos meus olhos, não são meus, são os olhos do nosso século. Os olhos que furam por detrás de tudo, vai começar. Minhas senhoras e meus senhores, vai começar!
Jacinto Lucas Pires - Exactamente Antunes 


Ter a dúvida é saber exactamente o que estou a dizer,
o Homem do Meio.