domingo, 25 de dezembro de 2011

Sou Eu


"Sou eu, eu mesmo, tal qual resultei de tudo, 
Espécie de acessório ou sobressalente próprio, 
Arredores irregulares da minha emoção sincera, 
Sou eu aqui em mim, sou eu. 

Quanto fui, quanto não fui, tudo isso sou. 
Quanto quis, quanto não quis, tudo isso me forma.
Quanto amei ou deixei de amar é a mesma saudade em mim.

E, ao mesmo tempo, a impressão, um pouco inconseqüente,
Como de um sonho formado sobre realidades mistas,
De me ter deixado, a mim, num banco de carro elétrico,
Para ser encontrado pelo acaso de quem se lhe ir sentar em cima.

E, ao mesmo tempo, a impressão, um pouco longínqua, 
Como de um sonho que se quer lembrar na penumbra a que se acorda, 
De haver melhor em mim do que eu.

Sim, ao mesmo tempo, a impressão, um pouco dolorosa, 
Como de um acordar sem sonhos para um dia de muitos credores, 
De haver falhado tudo como tropeçar no capacho, 
De haver embrulhado tudo como a mala sem as escovas, 
De haver substituído qualquer coisa a mim algures na vida.

Baste! É a impressão um tanto ou quanto metafísica,
Como o sol pela última vez sobre a janela da casa a abandonar,
De que mais vale ser criança que querer compreender o mundo —
A impressão de pão com manteiga e brinquedos
De um grande sossego sem Jardins de Prosérpina,
De uma boa-vontade para com a vida encostada de testa à janela,
Num ver chover com som lá fora
E não as lágrimas mortas de custar a engolir.

Baste, sim baste!  Sou eu mesmo, o trocado,
O emissário sem carta nem credenciais,
O palhaço sem riso, o bobo com o grande fato de outro,
A quem tinem as campainhas da cabeça
Como chocalhos pequenos de uma servidão em cima.

Sou eu mesmo, a charada sincopada
Que ninguém da roda decifra nos serões de província.

Sou eu mesmo, que remédio!"
Sou eu - Álvaro de Campos

Quando me levantar já não me volto a sentar.
Quando me calar já não volto a falar assim.
Quando sair já não volto a encontrar a mesma porta aberta.
Amanhã por esta hora celebra-se um final. Verdade seja dita...

Já tenho saudades,
o Homem do Meio.

sexta-feira, 2 de dezembro de 2011

The Slowest Man On Earth

Uma coisa que em geral não faço é correr para apanhar transportes. Portanto não sei o que me deu para o fazer. O que sei é que se não tenho cuidado com o chão molhado ainda fazia uma entrada de pés juntos à rapariga que esperava para entrar na carruagem. Um pequeno slide, de uns ténis que eu não sabia que escorregavam. Malandros. Eu assusto-a, e logo de seguida peço desculpa ao mesmo tempo que me começo a rir. E a corar. Ela rapidamente me liberta de qualquer culpa e entramos na carruagem. Ela senta-se e eu, por falta de lugar, fico de pé junto à entrada. Aparenta ter a minha idade, é morena, cabelo liso, comprido. Aquele vestido ficava-lhe muito bem, para não falar daqueles botins de cano alto e as meias até ao joelho. Sim, é verdade, fiquei a olhar. Ela era gira, que posso dizer?
A carruagem começa a esvaziar, e três estações a seguir fica um lugar vago à frente dela. Adivinhem quem aproveitou? Se disseram a senhora que estava de pé mesmo ao lado, acertaram. Poker face. Mas na estação a seguir vem uma boa oportunidade. Na mesma à frente dela, mas desta vez ao pé da janela, vagou um lugar. Eu aproveito, “com licença, obrigado”, sento-me e volto a levar os auriculares aos ouvidos. Ela ainda se ri. Olho para ela, começo-me a rir também, abano a cabeça.
A parte que se segue está alinhada com duas manias que tenho: Número 1, sempre que ando de metro e me sento junto à janela, uso o reflexo dela nos túneis para olhar indirectamente para as pessoas à minha volta. Mas acho que não serei o único; Número 2, com o cabelo grande (maiorzinho, vá), ganhei o hábito de lhe mexer quando não tenho mais nada que fazer. Meto os dedos junto à testa e prossigo até que a palma esteja no topo da cabeça. Várias vezes. Fiz esta última e quando olho para o reflexo, ela está a olhar para mim. Pelo canto do olho, enquanto segura nos apontamentos, sorrisinho na cara. Eu não sou a pessoa mais confiante do mundo, portanto tudo isto estava-me a dar um gozo imenso. Claro. Viro-me calmamente, olho para a frente, olho para ela (que ainda olhava para mim), e pela velocidade com que colocou os olhos de volta aos apontamentos, não estava à espera de ser apanhada. Eu rio. Ela também.
Chega a paragem dela, antes da minha. Levanta-se, pega na mala, guarda os apontamentos, dá por mim a olhar para ela. Levanta-se, olha para trás. O metro pára. Olha para trás. Enquanto sai, olha para trás. Foi ela a pisar o chão da estação e eu a ouvir a ficha a cair. Depois de passar a porta, olha para mim pelo vidro. Eu nunca desviei os olhos. Estranho em mim, garanto. E se me tenho levantado um segundo antes (não depois) do aviso de fecho de portas, aposto que ainda a apanhava.

De qualquer forma, se não deu para mais, deu para me aumentares o ego. E obrigado.

Vejo-te...nunca?
o Homem do Meio.