domingo, 31 de janeiro de 2010

Dir-te-ei o que sinto?

E se me convidares a entrar? Dir-te-ei o que sinto?
E se vieres comigo (até onde, não sei) para que eu te fale daquilo que me faz querer aproximar de ti?
Aquilo que não quero, que realmente me mete medo, é a hipótese de um reencontro casual e futuro. Após cumprimentos q.b., perguntarás como estou, após tanto tempo, para que te fale sobre o longo caminho que apressadamente percorri (porque assim aconteceu), sobre o quanto mudei (porque o fiz) e sobre a resignação que já não mora (porque a expulsei), quando na realidade queria falar sobre coisas que permanecem iguais (porque ainda pensarei em ti).
Ainda que a revelação me pareça um acto suicida, é importante que o faça e que perceba de que lado da porta devo estar. Ainda que a resposta seja a distância, será a primeira vez que vou atrás das certezas.

E é isto. 100º post para falar de coisas. Estou bem. Agora sim, estou bem. Mais 100, e ainda para melhor.

Eu sou o Homem do Meio. Até um dia.

segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

Não sei para onde vou.

"Vem por aqui" — dizem-me alguns com os olhos doces
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: "vem por aqui!"
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos olhos meus, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali...
A minha glória é esta:
Criar desumanidades!
Não acompanhar ninguém.
— Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre à minha mãe
Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos...
Se ao que busco saber nenhum de vós responde
Por que me repetis: "vem por aqui!"?

Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí...
Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.

Como, pois, sereis vós
Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?...
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos...

Ide! Tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátria, tendes tetos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios...
Eu tenho a minha Loucura !
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...
Deus e o Diabo é que guiam, mais ninguém!
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.

Ah, que ninguém me dê piedosas intenções,
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: "vem por aqui"!
A minha vida é um vendaval que se soltou,
É uma onda que se alevantou,
É um átomo a mais que se animou...
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou
Sei que não vou por aí!

José Régio - Cântico Negro

A falta de inspiração leva-me a procurar palavras de outrem que falem a minha vontade. Ou a que me mostrem. Obrigado.

Eu sou o Homem do Meio. Sei que não vou por aí. Até um dia.

quinta-feira, 21 de janeiro de 2010

Até hoje, fui sempre futuro.

"Não foi por acaso que o meu sangue que veio do Sul
se cruzou com o meu sangue que veio do Norte.
Não foi por acaso que o meu sangue que veio do Oriente
se cruzou com o meu sangue que veio do Ocidente.
Não foi por acaso nada de quem sou agora.
Em mim se cruzaram finalmente todos os lados da terra.
A Natureza e o Tempo me valeram: séculos e séculos
ansiosos por este resultado um dia
e até hoje fui sempre futuro.
Faço hoje a cidade do Antigo
e agora nasço novo como ao Princípio:
foi a Natureza que me guardou a semente
apesar das épocas e gerações.
Cheguei ao fim do fio da continuidade
e agora sou o que até ao fim fui desejo:
o Centro do Mundo já não é o meio da terra
vai por onde anda a Rosa dos Ventos
vai por onde ela vai
anda por onde ela anda.
Agora chego a cada instante pela primeira vez à vida
já não sou um caso pessoal
mas sim a própria pessoa."

Almada Negreiros - Rosa dos Ventos

Nada mais a acrescentar.

Eu sou o Homem do Meio. Até hoje, fui sempre futuro. Até um dia.

segunda-feira, 18 de janeiro de 2010

Probabilidades

Falemos de números.
1 em 10790000 é a probabilidade de se estar envolvido num acidente de avião. Muito baixa, e, curiosamente, nunca me fiz transportar num.
1 em 15,88 é a probabilidade de se cair da cama. Nunca tive de dormir de pé por isso.
Conclusão: definitivamente, não me guio pelos números. Ninguém o faz. E eu, que tão calculista tento ser, contrario-me todas as noites. Está portanto na hora de me libertar dos números, das probabilidades, das incertezas e certezas. Saltar uma ou duas vezes do precipício. Talvez numa delas o chão esteja apenas a um metro.

Eu sou o Homem do Meio. Até um dia.

sábado, 9 de janeiro de 2010

Espécie de Revolução

"Come so far, there's no going back
All this time we've been running from it
And where we are, and where we're going to
We'll organise a sort of revolution"
- Fink - Sort of Revolution

Pontos de viragem. De revolução. É disto que se trata. Quando achamos que estamos perdidos, ou quando estamos quase a entrar na resignação pura, algo muda. A inspiração de que precisamos, nas formas mais inesperadas. Aqueles dois segundos antes de um acidente, cinco segundos de um primeiro beijo, hora e meia de um filme, dias de recuperação. Uma frase numa parede, um sorriso, um gesto. Qualquer coisa pode mudar as nossas circunstâncias. É preciso, só, que o deixemos acontecer.

Quanto a mim, a frase na parede quase que o fez, mas foi preciso uma maleita para me lançar verdadeiramente.

E quanto a vocês? Qual foi o vosso ponto de viragem? Qual foi o vosso ponto de partida para a vossa espécie de revolução?

Eu sou o Homem do Meio. Até um dia.

sábado, 2 de janeiro de 2010

Keep Me Where The Light Is - Parte 2

Posso dizer que estava ao lado dele. Embora não me visse, eu estava lá. E não foi uma viagem fácil para nenhum dos dois. Não que a velocidade fosse abusiva. Nem as manobras irresponsáveis. O que mais me preocupava eram as lágrimas que lhe caíam pela face. Os maxilares cerrados. A respiração acelerada. A seriedade assustadora. Ele estava determinado a esquecer tudo. Um novo começo, pensou. Por isso fugiu. Não que a palavra lhe agrade. Mas foi isso mesmo que aconteceu. Uma fuga. Amanhece agora, quilómetros e quilómetros volvidos, e mesmo quando o sol estiver alto, ninguém vai saber onde ele está. “Eu fico bem. Não me procurem. Darei notícias.” Eram as frases que ocupavam o bilhete deixado na mesa da cozinha, e uma meia dúzia de emails enviados.

À chegada, ao entrar na garagem vazia, a dor é agora acompanhada por raiva. Na casa que tinha comprado para ela. Para ambos. Onde os passos ecoam no soalho. Onde pela janela entra a luz do sol e forma uma única sombra. Onde as malas só trouxeram os pertences de uma única pessoa. O indispensável e uma guitarra. Essa já fora do saco quando ele se sentou na única peça de mobiliário ali presente. Um banco de madeira. O início da terapia, que rapidamente se tornou o fim. A cada acorde, que devia afastar a dor, como aconteceu vez após vez, mais sofrimento. Mais raiva. Memórias. Uma discussão. Um acidente. Lembranças que trazem todos os detalhes. Traição. Uma morte. E tudo acabou aí. No chão se juntam bocados da guitarra. Agora como o seu coração: despedaçada.

Determinado a fazer aquela a sua morada. Não só no papel. Determinado a acabar com o eco, passou o resto do dia a receber a mobília. Entregas, papéis, enganos, a distracção que ele precisava. Um jantar solitário. Em silêncio. Mais calmo. Sem dúvida, mais calmo. No fim, a apatia deixou-o de cabeça em cima dos braços, ainda sentado à mesa. E daí até ao chão. Encostado à parede. Mesmo ao lado da porta que o separa da rua. Olha a guitarra. No mesmo sítio. Ainda despedaçada. O cansaço faz com que os olhos se fechem. Ao longe, uma melodia, talvez do outro lado da rua. Alguém mais partilha o seu gosto pela música. Uma voz feminina. Uma voz desconhecida. Leva a sua mão até à fechadura. Abre ligeiramente a porta, só para ouvir melhor. Naquele alpendre mal iluminado ela canta:

- Keep me where the light is - repetidamente, ao mesmo tempo executa acordes perfeitos, acordes que esperam, que vêm na altura em que deviam...não antes...não depois...

A mesma mão que abriu a porta apaga agora a luz.

- Keep me where the light is.

É ali que ele dorme hoje. Até porque a cama ainda não chegou. E porque aquela voz lhe transmite a paz que ele precisa.

- Keep me where the light is...


Eu sou o Homem do Meio. Até um dia.

Ano novo, música antiga

Jeff Buckley. Enough said.

Jeff Buckley - Last Goodbye


Eu sou o Homem do Meio. Até um dia.