Posso dizer que estava ao lado dele. Embora não me visse, eu estava lá. E não foi uma viagem fácil para nenhum dos dois. Não que a velocidade fosse abusiva. Nem as manobras irresponsáveis. O que mais me preocupava eram as lágrimas que lhe caíam pela face. Os maxilares cerrados. A respiração acelerada. A seriedade assustadora. Ele estava determinado a esquecer tudo. Um novo começo, pensou. Por isso fugiu. Não que a palavra lhe agrade. Mas foi isso mesmo que aconteceu. Uma fuga. Amanhece agora, quilómetros e quilómetros volvidos, e mesmo quando o sol estiver alto, ninguém vai saber onde ele está. “Eu fico bem. Não me procurem. Darei notícias.” Eram as frases que ocupavam o bilhete deixado na mesa da cozinha, e uma meia dúzia de emails enviados.
À chegada, ao entrar na garagem vazia, a dor é agora acompanhada por raiva. Na casa que tinha comprado para ela. Para ambos. Onde os passos ecoam no soalho. Onde pela janela entra a luz do sol e forma uma única sombra. Onde as malas só trouxeram os pertences de uma única pessoa. O indispensável e uma guitarra. Essa já fora do saco quando ele se sentou na única peça de mobiliário ali presente. Um banco de madeira. O início da terapia, que rapidamente se tornou o fim. A cada acorde, que devia afastar a dor, como aconteceu vez após vez, mais sofrimento. Mais raiva. Memórias. Uma discussão. Um acidente. Lembranças que trazem todos os detalhes. Traição. Uma morte. E tudo acabou aí. No chão se juntam bocados da guitarra. Agora como o seu coração: despedaçada.
Determinado a fazer aquela a sua morada. Não só no papel. Determinado a acabar com o eco, passou o resto do dia a receber a mobília. Entregas, papéis, enganos, a distracção que ele precisava. Um jantar solitário. Em silêncio. Mais calmo. Sem dúvida, mais calmo. No fim, a apatia deixou-o de cabeça em cima dos braços, ainda sentado à mesa. E daí até ao chão. Encostado à parede. Mesmo ao lado da porta que o separa da rua. Olha a guitarra. No mesmo sítio. Ainda despedaçada. O cansaço faz com que os olhos se fechem. Ao longe, uma melodia, talvez do outro lado da rua. Alguém mais partilha o seu gosto pela música. Uma voz feminina. Uma voz desconhecida. Leva a sua mão até à fechadura. Abre ligeiramente a porta, só para ouvir melhor. Naquele alpendre mal iluminado ela canta:
- Keep me where the light is - repetidamente, ao mesmo tempo executa acordes perfeitos, acordes que esperam, que vêm na altura em que deviam...não antes...não depois...
A mesma mão que abriu a porta apaga agora a luz.
- Keep me where the light is.
É ali que ele dorme hoje. Até porque a cama ainda não chegou. E porque aquela voz lhe transmite a paz que ele precisa.
- Keep me where the light is...
Eu sou o Homem do Meio. Até um dia.